Em uma pequena comunidade no estado de Roraima, mulheres indígenas moldam não apenas barro, mas também a identidade de um povo. A tradição das panelas de barro da Raposa atravessou gerações com mãos firmes, rituais ancestrais e sabedoria herdada. Em 2024, essa herança conquistou um marco histórico: o reconhecimento da Indicação Geográfica (IG) pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). No Inova Amazônia Summit 2025, realizado em Macapá, o líder indígena Enoque Raposo, presidente da associação das paneleiras da Raposa, compartilhou os bastidores dessa conquista.
A busca pela IG teve início em 2017, de forma quase casual, durante uma consultoria do Sebrae voltada ao turismo comunitário. Foi o consultor Marcos Cury, ao participar de oficinas com as artesãs da Raposa, que percebeu o potencial cultural e mercadológico daquelas panelas. “Ele passou duas noites lá com a gente, fazendo panela junto com as mulheres. Depois me disse: ‘Essa panela tem potencial para se tornar uma IG’, eu nem sabia o que era isso”, relembra Enoqu

A partir daí, Marcos aprofundou seus estudos, incluiu a temática em seu mestrado e, com o apoio da comunidade, iniciou um longo processo de pesquisa e estruturação para o reconhecimento do Inpi. “A gente sempre cobra dos pesquisadores: ‘Sua pesquisa vai ajudar a nossa comunidade ou só quer se aproveitar?’”
O que diferencia as panelas da Raposa de outras similares pelo país vai muito além da técnica.
Cada peça é feita com base em um conhecimento ancestral, transmitido pelas mulheres da comunidade, com rituais, rezas e saberes milenaresexplica Enoque
O barro, ou melhor, a vovó barro, Kogonon, na língua Makuxi, é reverenciado antes de ser retirado da terra.
O processo é exclusivamente feminino, desde a coleta da argila até a moldagem das panelas, pois,as mulheres estudam os tipos de barro (amarelo, vermelho, preto e branco) e combinam suas propriedades com precisão. A comunidade da Raposa, segundo Enoque, é referência: “Outras comunidades vêm buscar consultoria com nossas paneleiras. A Raposa é a mãe.”
Hoje, a associação das paneleiras conta com 15 mulheres ativas, trabalhando diariamente com a produção artesanal.
Me orgulho muito de representar essas mulheres. O conhecimento está na mão delas. A panela continua sendo um símbolo do poder feminino entre os Makuxiafirma
A associação, criada para fortalecer a comercialização e a proteção cultural das panelas, tem levado o nome da Raposa para o mundo. Após o reconhecimento da IG em agosto de 2024, o produto começou a participar de grandes eventos nacionais e, inclusive, a ser levado por turistas para fora do Brasil.

Com o reconhecimento oficial, as panelas da Raposa ganharam novas jornadas, participando de grandes eventos como o Viva Roraima, Festival da Melancia em Normandia e agora cruzam o país — com presença confirmada em eventos como o Festival de Turismo de Gramado. O próximo desafio é resolver gargalos logísticos, como a necessidade de embalagens que garantam segurança no transporte.
Para Enoque, o maior mérito é coletivo.
O reconhecimento não é meu. É delas. O conhecimento é delas. Eu só carrego essa história com orgulho para o mundo. Nosso trabalho é mostrar que a cultura indígena não é coisa do passado. Ela vive, respira e ensina
O papel do Sebrae
A gestora de inovação do Sebrae Roraima, Fabiana Duarte, explica como o processo de reconhecimento da IG foi possível: “Foi feito um diagnóstico lá em 2020 para avaliar se as panelas da Raposa tinham procedência e notoriedade. Quando confirmamos isso, estruturamos todas as etapas: criar associação, desenvolver caderno técnico, signo distintivo… Foram quase dez etapas até o depósito do pedido no Inpi.”
De acordo com ela, o apoio financeiro e técnico do Sebrae foi essencial. “A IG indígena das panelas da Raposa é única no Brasil. Isso dá um apelo ainda maior ao produto”, reforça Fabiana.